O teu corpo adormece nos meus braços, na rotina diária de um afago. O teu olhar cerra-se intermitente e cansado de uma busca incessante pelas novidades da vida: as cores brancas das paredes, os tons quentes de um quadro na sala, ou até a intensidade de um candeeiro. O teu sorriso ainda ténue e tímido esboça-se cuidadoso como se fosse o traço de um pincel que o colorisse para a eternidade. Lá fora os dias frios contornam a casa que nos aconchega e a rua cobre-se num manto amarelo de folhas secas onde os passos de uma cidade caminham frígidos. Ignoras as atrocidades de uma realidade sangrenta que percorre os canais de televisão. Desconheces os ruidosos silêncios que condicionam a vida, tal como querem que seja. Vives no teu mundo de inocências, de uma absoluta ignorância que ironicamente te protege. Não sabes nem desejas saber as razões dos outros. Basta-te o esforço para te fazeres compreender, para sinalizar a vontade de comer escolhes um choro e para te queixares de uma dor outro ainda mais acentuado e regular. E depois os teus olhos abrem-se claros como o céu primaveril. Lá fora, para além dos dias frios e das ruas encobertas de folhas secas, o mundo decompõe-se entre bons e maus, entre justiceiros e terroristas. Enquanto muitos se definham numa crise financeira, outros se vêm encurralados num gueto cada vez mais vasto de sangue e de miséria. E embora ainda não seja esta realidade atendível à tua existência, a verdade mais ou menos absoluta é que um dia te saberei confrontado com ela. E imagino a tua desilusão, a frustração a percorrer-te o olhar cândido de uma criança que merece o melhor da vida. A ti como todas as outras crianças em que penso agora, indefesas, abandonadas no direito a sonhar e a ter uma vida melhor. Antevejo as tuas mãos já grandes serem insuficientes para cuidar tanta amargura, e o teu sorriso já definido e natural a esmorecer-se nas contrariedades de um mundo cada vez mais injusto e selectivo. Um destes dias, quando me compreenderes, quero falar-te da utopia: do direito a desejar e a sonhar livremente, e da coragem dos homens que vencem impolutos num mundo imoral. Por agora, acolho-te no meu colo como se tratasse de uma fortaleza.
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