28 de fevereiro de 2008

Paixão

talvez não reconheças nos meus gestos a expressão da paixão,
nem no brilho intenso do meu olhar o desejo de ti na minha vida.
talvez não saibas que vem de ti a energia que me move,
ou sequer que a forma do meu corpo se molda da tua figura.
talvez não saibas o sentido profundo do meu coração,
as amarguras da minha alma de cada vez que nos apartamos.
talvez é a dúvida razoável que nos alimenta
e apenas por isso a paixão se renova.

27 de fevereiro de 2008

Aponto o olhar...

aponto o olhar na direcção de um corpo vazio
com o único propósito de fugir ao teu olhar
desejo a fuga definitiva e permanente
desafio a natureza do meu ser
forço a corrente dominadora de um rio
e dou por mim a vacilar
o meu olhar é a única arma que resta
a única defesa que tenho para sobreviver

26 de fevereiro de 2008

Estado de alma

ruiram as paredes na passagem de uma brisa
no chão amontuaram-se reinveinções e desejos inconsequentes
na tarde cresceu o silêncio agudo que adormeceu as aves
não basta o sol no céu azul de inverno
nem as searas em cantos de primavera
num dia, num gesto, tudo se precipita

25 de fevereiro de 2008

Todos os dias

Todos os dias renasces em mim no canto da natureza, tomas as formas das ávores altas e densas que rasgam as planícies, retenho das flores o teu aroma feminino que me enebria os sentidos, e dos rios a frescura dos teus lábios húmidos. Em cada acordar os meus sentimentos brotam da aurora numa crescente convicção de te amar. Todos os dias, desde os dias que a tua imagem me persegue, descubro a vida. E da vida faço vida. E da vida faço o desejo de viver.

22 de fevereiro de 2008

Beijo

Aguardava por si como quem aguarda o suspiro final. Em desespero, entre desalentos cultivou-se marginal. Percorreu as ruas apinhadas. Vagueou entre mesas de café. Acomodou-se no centro de um largo acompanhado por um pensamento: ela. Aguardava. Aguardava na espera longa de a ver. De a ter junto a si. E desejou mil coisas. E sentiu mil desejos. E fechou os olhos na esperança de um beijo e de um abraço. E desejou ouvir as palavras como ecos das suas. E desejou o seu suspiro aliviado a desfazer-se sobre si. Aguardou como se esperasse uma vida inteira.
Surgiu estranha. Não esperava outra coisa. Sentiu o seu rosto abatido. O seu olhar esgotado. Tremeu porque julgou que por si o seu olhar já não brilhasse. Reencontraram-se como estranhos. Sem abraço. Sem beijos. Circunstancialmente, pareceu-lhe de imediato. Partiram para a conversa. Outra vez as palavras, de novo as frases feitas e os conceitos apertados. As mãos expostas longe um do outro. Os olhares iniciais fugidios e covardes de os quererem encontrar. E o seu corpo desejando o dela. E o seu ser inclinando-se sobre ela. E ele frágil e temeroso. A ansiedade nele. Um nó no estomago persegue-o na sua ausência. Parte de si - talvez a mais pura e bela - despe-o de cada vez que ela se afasta.
Longos e fundos minutos passaram. Longos e profundos instantes percorreram o seu corpo. E as palavras rudes e o desalento da esperança vestiram-lhe a pele interior. E ao fundo prédios altos como muralhas. E nuvens densas como mordaças. E de si um olhar frio e descomprometido. E nem mais palavras. Nem mais desculpas. E uma mão rompe o silêncio da amargura. E um gesto crescente constrói um beijo. O mais doce e fresco, o mais simples e desejado beijo.

18 de fevereiro de 2008

Chuva

Lá fora a chuva escorre pelas telhas improvisadas e o meu corpo resguarda-se entre as paredes irregulares de uma casa estranha. Escuto a tua voz e isso é o suficiente para que as palavras me invadam o espírito. E porque hoje chove como se fosse um poema dedico-me aos teus olhos como se fosse um poeta.

Ainda temos um do outro

ainda temos a chuva forte para nos refrescar
e as ruas alagadas como lágrimas de raiva
temos entre nós e o horizonte as searas férteis e verdes
e os caminhos ornamentados de flores
e tudo o que temos é mais muito mais que nos separa
somos os oceanos a transbordar
e os céus carregados por sete cores
ainda temos um do outro a esperança
e as árvores altas e densas para repousar
e somos um do outro como lembrança

O caminho dos outros

O fumo do cigarro subia em espiral pelo céu misturando-se com a névoa cinza da manhã. A seus pés um lago raso com a forma geométrica de um rectangulo em jeito de fronteira entre a cidade e os campos. O vento levante agitava as jovens árvores que circundam o espaço enquanto os patos se resguardam sob um pontão improvisado. Em cada segundo o tempo queima esperança de um raio de sol e em cada instante se adensa a neblina cobrindo um olhar que já nada vê. Cruza as pernas desafiando a resistência sobre o tempo. Desafia-se a si próprio como se fosse vento ainda mais forte. Seguem-se momentos lentos de silêncio. Aguarda pelo fim do cigarro querendo afirmar uma convicção. De que servem as coisas banais se não lhes dermos alguma importância? Vai pelos seus próprios pés em passos lentos e fundos em direcção à queda de água. Conta os passos. Ouve-se a si próprio. Fala de si para si em voz alta. As mãos trémulas separam-se do corpo bruto e nú. Trepa o corrimão de segurança. E empoleirado mergulha de cabeça na água gelada. Guarda para si a respiração e segue o caminho dos peixes. E segue o caminho dos peixes...

8 de fevereiro de 2008

Questão irresolúvel

Que ousadia. Que pretensão a de desejar o que não posso ter.
Que incoerência. Tanta contradição querer tanto quando tanto é sempre demasiado.

E no entanto, quem amaria se ao seu amor não quisesse tanto?

Poema sobre Poema

Seguia depois de ti as pégadas que deixavas no areal e nas tuas costas ia-se afastando o mar revolto que estendia um tapete branco de espuma até ao horizonte. Nessa tarde que não era tarde nem noite, que não tinha cor nem cheiro, apercebi-me da tua ausência. Fria e ventosa como o inverno que me obriga ao agasalho estranho. Fixei-me nas pégadas que o salgado mar queimava até à inexistência de vida. Humedeceram-se-me os olhos contemplando o espaço vazio que criavas entre mim e o resto do mundo. Senti a fúria do engano. Exasperei. Morri no instante em que te julguei nunca mais de mim.
Acontecem outras coisas quando estamos longe. Não me reconheço. Não sei de mim nem quero saber dos outros. Não procuro senão uma figura dissimulada. Não quero senão o que tens para me dar. Seguiria, sempre que me pedisses, o rasto que deixas. Seguiria, sempre que o quisesses, o cheiro dos campos onde as flores desenham o teu corpo.