27 de outubro de 2008

CHÁ E TORRADAS: Parte 2

A rotina dos dias cumpre o objectivo de estimular o juízo. Acordo nas manhãs que confundo com as da primavera e deixo entrar a luz limpa em casa. Convido-a a entrar como se convida um amigo e deixo-a percorrer as divisões como se fosse da família. Quero pelas manhãs o abraço da natureza, o meu corpo entregue à vida sadia e a minha alma em harmonia com os dias alegres.

Mantenho o vício mortal do tabaco. Cigarros após cigarros. E o primeiro logo pela manhã enquanto espero que a luz solar entre. São os vícios que nos vergam. Que nos manuseiam como fracas figuras. E no tabaco sou tão fraco como alguns de vós serão noutros defeitos.

Penso nos outros. Penso em vocês que me dizem qualquer coisa, como se o modo me melhorasse o conteúdo. Imagino-me muitas vezes como me desejo: forte e impoluto. E nesses desejos supero-me por vezes, derroto-me noutras tantas. Como Ser falível e que se verga na hipocrisia que detesta. E é no fingimento que nos duplicamos, como um espelho que nos repete a figura.

Os passos aprendi que fazem o caminho. Um de cada vez. E os olhos bem abertos e atentos. E o corpo em posição de ataque. Com a leveza das mãos preparo-me para o que vem – já não as ambiciono delicadas, entendo a rugosa pele que as cobre. Escolhi tardiamente construir o caminho sereno da vida. Talvez porque só agora o extremo do meu olhar o permite. E bem sei que num futuro mais além corrigirei as opções de hoje. É por isso que é preferível serem os passos a traçar o caminho que o caminho a desafiar os passos. Aprendi-o com a dureza das perdas de uma vida, errante como um cavaleiro nocturno vagueando nas brumas.

Não tenho o direito de menosprezar a vida. Aprendi, desde muito pequeno, a respeitar e cuidar desse valor sublime. Moldaram-me na forma de princípios e valores que são muitas vezes os meus maiores adversários. Que confundem os outros e me castram. Que me fazem sentir hipócrita quando os ignoro.

Sou um ser reflexivo: penso e repenso, e gosto da clarificação das coisas. Não construo – ou pretendo não construir – situações sombrias, pelo contrário. Penso no lugar dos outros antes de decidir sobre eles, penso na razoabilidade das coisas, reflicto sobre o espaço temporal em que tudo se desenvolve… e decido! E antes uma má decisão que decisão nenhuma, já me dizia o meu pai…

Se fizer as contas à vida é fácil somar mais dias de felicidade que dias de infelicidade. Mas se pesar uma coisa e outra obtenho um resultado amargo. Dizem que nos recordamos com maior facilidade das coisas más. É verdade. São essas que nos pesam a memória – pelo insucesso, pela inoportunidade, pelo infortúnio, pelas consequências – como se fossem uma âncora que de tempos a tempos nos fundeasse em alto mar.

Ajusto-me nos finais de tarde, como todas as coisas se ajustam a seu tempo. Sigo o instinto animal do recolhimento e deixo-me ficar numa casa que me enlaça e me surpreende com coisas novas a cada dia. Dou por mim fixado no sorriso ingénuo e distraído de quem amo. E é o suficiente para querer continuar a viver. E há meses que me entreguei ao sentimento insuspeito de ver uma barriga materna a crescer. E parte de mim revigora-se noutra vida. Temo por ela. Temo pela fragilidade dos dias… e isso, incompreensivelmente, faz-me mais forte, mais determinado, mais ousado, menos caprichoso. A cada dia perco o orgulho fútil. E talvez me faça melhor no tempo certo.

Continua…

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