24 de julho de 2007

A pianista

Sentada ao piano tocava uma melodia que entoava o salão com a serenidade de uma pauta que desconhecia. As suas mãos voavam eloquentes como gaivotas sobre o mar. Tinha o cabelo castanho claro e usava um vestido branco que lhe vestia o corpo, a defini-la com sensualidade.

Era o único cliente no bar do hotel aquela hora e cheguei a pensar que continuava a tocar com a obrigação de satisfazer o gin que tinha sobre a mesa. Reparei que o barman arrumava o balcão e me olhava com um misto de cortesia e de vontade para que me fosse embora. Passava da meia-noite e naquele hotel em Bruxelas engolia a saudade em sucessivos copos de gin tónico. Chamei o barman e pedi-lhe a conta e uma última bebida para que percebesse que sairia em breve.

A pianista continuava a tocar como se o salão do bar estivesse cheio. Observou a minha conversa com o barman, a quem pedi que lhe servisse uma bebida. Serviu-me sem que desse por isso, desejando-me boa noite.

Peguei no telemóvel e escrevi coisas absurdas e sem nexo. Coisas que crescem na distância e que se alimentam com a agrura da nostalgia. O meu olhar estava fundo e triste. Descaído como a copa das árvores que morrem lentamente.

Recostei-me no cadeirão de veludo vermelho, acendi um cigarro que fumei de olhos fechados e assim fiquei por uns instantes absorvido pelas notas melódicas do piano. Dei os últimos goles no gin, apressados e decididos, sorvi um pedaço de gelo e levantei-me devagar. Ao mesmo tempo a música parou.

Já de pé agradeci a paciência do barman e sorri cúmplice à pianista. Sorriu-me com ternura. Levantou-se e caminhou na minha direcção com a elegância de uma diva. Em francês agradeceu-me a bebida. A conversa não se poderia prolongar pela dificuldade em lhe responder. Tentei falar-lhe em inglês, felicitando-a pela sua actuação. Respondeu-me com um sotaque germânico acentuado mas bem mais perceptível que o francês.

Notei que reparara no meu ar abatido pelas balas da angústia e num gesto inesperado convidou-me para sentar junto ao balcão. Chamou o barman pelo nome e com os dois dedos da mão esquerda no ar pediu duas bebidas. Ofereci-lhe um cigarro ao mesmo tempo que lhe explicava que tinha de ir descansar. No dia seguinte regressava a Portugal. Percebi a sua sensualidade na forma como me sorria e olhava e na maneira como ajeitava o seu corpo no cadeirão e se debruçava insinuante para recolher o copo de vinho branco na mesa baixa.

Disse-me o seu nome: Astrid, da Áustria. E estava em Bruxelas a tentar a sua sorte como música. Estava ali como poderia estar noutro lugar, disse-me. Expliquei-lhe o que estava a fazer em Bruxelas naquela semana. Continuava a insinuar-se cada vez mais descaradamente. Conversamos enquanto fazia questão de lhe desviar o olhar. Perguntou-me porque estavam os meus olhos tristes. Respondi-lhe que por amor. Riu-se. Riu-se, incomodando-me com a sua reacção. Repeti-lhe, preocupado que não tivesse entendido: “Por Amor, porque sinto saudades de quem amo. Porque hoje desejei que essa mulher tivesse passeado comigo pela Grand Place. Porque os dias sem o seu cheiro são apáticos e insonsos.”.

Propôs um brinde que não recusei e quando pousamos os copos sobre a mesa agarrou-me a mão entrelaçando os seus dedos nos meus. Tinha as mãos finas e suaves como a seda e fez questão que as sentisse apertando as minhas com delicadeza, deixando-me sem resistência.

O barman estava ainda mais impaciente e Astrid convidou-me para irmos beber uma bebida num bar que conhecia e estaria aberto aquela hora. Agradeci o convite e tentei recusá-lo com a desculpa do cansaço e dos meus compromissos na manhã seguinte. Insistiu olhando-me nos olhos e sorrindo amorosamente. Percebi no seu convite e nas suas expressões as intenções implícitas. Ainda assim acedi, com a promessa de que não demoraríamos.

Saímos do hotel a pé. A noite estava fria e a chuva caía sobre a rua e os nossos corpos agasalhados. Sugeri que fossemos num táxi que estava parado à porta do hotel, colocou o seu braço em redor do meu pedindo-me que caminhássemos.

Pouco passava da 1 hora da madrugada, era quinta-feira, e aquela hora em Bruxelas as ruas do centro pareciam abandonadas. Lembro-me do silêncio que rasgamos com uma conversa desapropriada. Atravessamos a Grand Place e seguimos por uma rua mais estreita onde nos rimos com a estátua do Make-a-Pice. Uns metros mais adiante entramos num bar com decoração clássica, as paredes forradas pela metade a madeira escura e uns sofás alinhados em redor. Sentou-se primeiro no sofá em frente ao meu e uns instantes depois no sofá grande ao meu lado onde me acariciou o cabelo delicadamente.

Conversamos entre bebidas que caíam na mesa como relâmpagos e a curiosidade vulgar de comparar países diferentes. Quando demos conta éramos os únicos clientes no bar. Saímos abraçados um ao outro desafiando a lei da gravidade…

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